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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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O buraco da fechadura

 

 

 

A Fechadura
por
Alysson Estopa,

flickr

 
“As escutas telefónicas não podem servir para devassar conversas com terceiros que nada têm a ver com as suspeitas em investigação nem com qualquer outro facto criminalmente relevante.” Vital Moreira, Público, 16 de Fevereiro de 2010
Foi por um destes fins de tarde chuvosos, frios e açoitados pelo vento. Calcorreava eu, a passo estugado, a rua estreita e lúgubre, como o são, na baixa farense, todas aquelas que, desde há uns vinte e tal anos, começaram a ser colonizadas por estabelecimentos de diversão nocturna, quando, precisamente de dentro de um desses estabelecimentos, ainda  fechado àquela hora, irrompem gritos estridentes. Era uma altercação violentíssima entre um homem e uma mulher, como logo pude verificar, espreitando pelo buraco da fechadura. O homem, que aparentava ter pelo menos quarenta e três anos e possuir sólidos conhecimentos de direito penal, batia barbaramente numa mulher que aparentava não compreender cabalmente as causas primeiras da tradicional opressão do sexo feminino. Indignado com o que me era dado perscrutar pelo estreito orifício da fechadura, bati à porta. Em vão. A exaltação que reinava dentro era tal que nenhum deles ouviu. Logo a seguir, porém, ouvi um estampido e um impacto surdo que não enganariam ninguém. Um tiro tinha sido disparado e a mulher caíra aos pés do seu agressor. Sem vida.
Sem saber que fazer, sentindo faltar-me o ar, dirigi-me ao primeiro transeunte que passava naquele instante. Era um homem de estatura média e farta cabeleira branca que aparentava ser professor universitário. Para ser mais preciso, parecia-se imenso com o Professor Vital Moreira.
– Ajude-me! Não sei que fazer! Acabo de presenciar um homicídio no interior deste estabelecimento.
– No interior?! E como pôde testemunhá-lo se está no seu exterior?
 – Ia a passar ocasionalmente, quando uma tremenda gritaria me pareceu indiciar uma altercação no interior desta baiuca. Espreitei, vi a agressão tão bem quanto o estou a ver a si, se bem que através do estreito orifício da fechadura, e ouvi perfeitamente o tiro que matou a pobre mulher!
– Ó meu amigo, o seu comportamento não é compaginável com as normas estatuídas no Estado de direito democrático. O meu amigo acaba de cometer o que se chama uma violação da reserva de privacidade. Repare que a sua liberdade de observação e escuta não pode prevalecer sobre o direito ao bom-nome e reputação de um cidadão que, no aconchego de um estabelecimento de diversão (nocturna ou diurna é irrelevante para o caso), interage como muito bem entende com uma cidadã adulta. A sua observação, a sua escuta – são puramente ilegais. Dir-lhe-ei ainda que a sua alegação é seguramente fruto de uma imaginação criativa, e o senhor procurador-geral da República por certo a desautorizará, pois não verá nela nenhum indício do caviloso acto a que se referiu. A final, não lhe restará outra solução que não seja o arquivamento do processo, e ao senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça restará a tarefa de o mandar destruir. Fique-se com esta.
– Ah bom! – murmurei, desarmado, ao mesmo tempo que me autocensurava por não ter seguido Direito. Mas o sentimento de culpa que me esmagava cessou quando ouvi um som de violino familiar. Eram oito horas e o meu telemóvel despertava-me.
Obs. Algumas expressões (não assinaladas) pertencem ao artigo em epígrafe.