Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Caim, as caricaturas de Maomé e as metáforas da Bíblia

A recente publicação de Caim, de José Saramago, suscitou a indignação e os protestos de muitos. Não se assistiu, porém, ao desenrolar de violentas manifestações de rua com apedrejamentos e incêndios um pouco por todo o lado, como aconteceu no mundo islâmico aquando da publicação das caricaturas de Maomé.
 
Não creio que estas situações sejam comparáveis. A relação actual dos cidadãos ocidentais com o divino não é, de todo, assimilável à que os muçulmanos mantêm com a sua religião. Aqui, depois das cruzadas, do teocentrismo medieval, dos “episódios” sangrentos das guerras de religião (a que ainda perdura na Irlanda é antes uma guerra de classes) e da Inquisição, conhecemos o Iluminismo, a Revolução Francesa - e outras, imbuídas de anticlericalismo, iconoclastas, ateias, antropocêntricas. Ali, o apego integrista-fundamentalista à letra do Corão e a amálgama dos poderes político e religioso parecem ter atravessado os séculos incólumes. Prova de atraso atávico desses povos? Mais uma vez, não creio. Querer julgar os outros povos à luz da nossa própria idiossincrasia é uma atitude de etnocentrismo que a consciência esclarecida crescentemente condena. Esses povos têm apenas a sua própria “orientação” civilizacional. Talvez acabem por “convergir” connosco. Ou talvez não. Mas é seguramente ilegítimo impingir-lhes os nossos valores e os nossos “timings” como se fossem pressupostos irrecusáveis da humanidade. Para além do mais, nem sequer temos autoridade moral para lhes apontar o dedo, nós, ocidentais, que temos uma história e um presente pejados de atrocidades, nomeadamente coloniais, para citar só aquelas em que muitos deles figuram como vítimas.
E esta condenação que aqui se lavra das nossas atrocidades, envolvendo um claro juízo moral, não contraria o que atrás ficou dito sobre a postura etnocêntrica. É que se trata de uma condenação que surge a posteriori, vinda de consciências que conheceram as transformações a que me referi. E que, por isso, têm “obrigações” especiais, digamos assim.
É pelas razões aduzidas que contesto o acerto de críticas dirigidas precisamente àqueles que, como eu, optam por tratamentos diversos dos fundamentalismos – o muçulmano e o cristão.
Voltando a Caim, de Saramago, a acusação de falta de respeito pela consciência religiosa dos cristãos parece-me acertada. Mas também me parece dever ser contextuada e, consequentemente, desvalorizada: o contexto ocidental moderno caracteriza-se precisamente pela arreligiosidade das elites intelectuais e pela iconoclastia, o que “autoriza” tais excessos. Quanto à acusação de que o autor teria feito uma leitura literal da Bíblia, quando o seu conteúdo só pode ser entendido metaforicamente, parece-me que os detractores de Saramago não entenderam a ironia do livro. Para Saramago, tudo é efectivamente metafórico – a começar por Deus, arquimetáfora das potencialidades humanas. Ou não será verdade que os atributos de Deus (omnipotência, omnisciência, omnipresença) são cada vez mais os atributos do homem – agora, com os progressos da ciência e da tecnologia, a tender para a eternidade?