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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Uma VENEZA DE TÉDIOS que não entedia

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Como todos sabemos, Fernando Pessoa tinha vários amigos no Facebook. Entre eles, um engenheiro naval, formado na Escócia, com quem o próprio Pessoa se compara, dizendo ser o tal engenheiro naval, “o mais histericamente histérico” de si mesmo, Pessoa[1]. Nunca gostei muito deste amigo do Pessoa, desde que li uma onomatopaica Ode Triunfal que, invariavelmente me fazia lembrar a Marcha sobre Roma, o Marinetti, o D’Annunzio e outras personagens pouco recomendáveis, tudo muito bem acomodado no pacote da sociedade industrial e na exaltação da beleza da guerra[2]. Por força do exercício profissional, tive de o ler, o tal engenheiro naval, mas andei sempre saltitando, escusando-me a lê-lo de fio a pavio. Por essa razão também, nunca lhe pedi amizade, o que, aliás, não serviria de nada, já que ele atingiu os cinco mil amigos e o fb não permite ir além disso. Em contrapartida, sou seguidor de outros amigos do Pessoa, como sejam o Reis e o Caeiro (trato-os assim porque nos damos bem, embora longe de concordarmos em tudo). O Caeiro é o meu preferido. De tal modo que até os meus filhos adormeciam como bem-aventurados (“há metafísica bastante em não pensar em nada”), ouvindo o pai ler-lhes O Guardador de Rebanhos. Bons tempos.

Ora o Pedro Jubilot, que não deve partilhar deste meu preconceito (terá outros, que, nisto de preconceitos, quem nunca os teve que me atire a primeira pedra, parafraseando o defensor oficioso da Maria Madalena), obrigou-me a ler o Álvaro de Campos (é este o nome do tal engenheiro) de uma ponta à outra, o que certamente contará um dia para a remissão dos meus pecados, quando chegar ao primeiro círculo do Inferno, (ou ao sexto, que é o dos heréticos, segundo um predecessor de poetas mórbidos, que viveu em Itália e escreveu uma comédia dita divina, porque é deprimente q.b., séculos antes de il Duce chegar ao poder)[3]. E obrigou-me por que razão? Porque publicou mais um livro de poemas ou de prosa poética (dêem-lhe o nome que quiserem, que eu até o acho inclassificável, mas leiam-no), com o título Veneza de Tédios, e “Veneza de tédios”, diz-nos a Introdução de Marco Mackaaij, é uma expressão usada por Álvaro de Campos no segundo dos dois “Excertos de Odes”[4].

Li ou reli, pois, as Poesias de Álvaro de Campos, para aí encontrar a tal expressão e respectivo contexto e para descortinar a eventual inspiração de Jubilot. Mas tenho de confessar que não a encontrei, a inspiração. Não. O Pedro Jubilot, sobre quem já escrevi[5], é um escritor que alia a sensibilidade culta do poeta ao gosto das formulações próprias do pensador, ao amor pela paisagem e para com as pessoas que a habitam. Não há em Veneza de Tédios aquele frenesim da maquinaria, na Ode Triunfal, nem a exaltação da “maravilhosa beleza das corrupções políticas”, dos “deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos”, dos “progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos”, da

Maravilhosa gente humana que vive como os cães,

Que está abaixo de todos os sistemas morais,

Para quem nenhuma religião foi feita,

Nenhuma arte criada,

Nenhuma política criada para eles!»

 

(Já agora, o resto da estrofe:

 

Como eu vos amo a todos porque sois assim,

Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus,

Intangíveis por todos os progressos,

Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!)[6]

 

Não sei se este engenheiro leu Nietzsche, mas poderia ter subscrito o que o bigodudo escreveu n’ O Anticristo, para me ficar por uma só citação: «Que é que eu odeio mais entre a escória dos nossos dias? A escória socialista, os apóstolos de Chandala que minam o instinto, o prazer, o contentamento do operário que leva uma vida humilde – que tornam o operário invejoso e lhe ensinam a vingança…»[7]. Nada de mais afastado da atitude de Pedro Jubilot nos seus textos, um hino discreto que, em surdina, combina a paisagem natural com a paisagem humana, não menos natural, pontuando o todo com notas de uma convivialidade própria das gentes do Mediterrâneo ou redondezas, mesmo quando se expande até à californiana Venice.

Enfim, é no livro do Pedro Jubilot que temos de nos focar. Assim sendo, aqui vai:

Em Veneza de Tédios, Parte I, Jubilot vagueia por largos, jardins, igrejas, ruas, praças, miradouros, travessas, pontes, mercados da Veneza algarvia – que é Tavira, por acaso, a terra natal do engenheiro (e cá voltamos nós à vaca fria). Vagueia, interioriza a paisagem, pressente-lhe «uma poesia marítima, húmida e reticente» (p. 9), põe sempre lá alguém que vive ou já viveu («até os mortos dançam no seu vetusto jardim por entre os arcos e as colunas revestidas a hera» (p. 10), lobriga o engenheiro, dactilografando febrilmente num dos quartos da Residencial Secqua (p. 11), vislumbra Fernanda Guerra, na Nova Aurora, «debruçada sobre afazeres de prazeres», vivendo «ao sabor de saberes», naquele «templo abandonado aos que ainda crêem e lêem» (p. 12), enfim, percorre, calcorreia tudo o que pode e, de tudo o que capta pelos sentidos, devolve-nos a imagem fugaz, mas impressiva, associada a reflexões sobre o tempo que «até se esquece de inexistir» (p. 14), e «o relógio de madeira já tão antigo» lembra que «custa recuar na clareza perturbadora do passado e é temeroso tentar vislumbrar muito à frente de agora, no que parece uma pura e degradante incerteza» (p. 16).  O tempo faz-se poesia «nem que seja só por aqueles momentos em que dura a passagem das palavras para a mente, e depois soltá-las na ímpia observação dos dias que se insurgem» (23).

Álvaro de Campos (outra vez!) está quase sempre presente, de uma maneira ou de outra, citado textualmente ou lembrado na sua personalidade literariamente forjada, ainda que emocionalmente sentida pelo seu criador. Mas não é o único. Outros poetas (Fernando Cabrita, Eugénio de Andrade, Emiliano da Costa, Yvette Centeno), o actor Vítor Correia, o cineasta César Monteiro, o Mediterrâneo – aqui tão perto – estão presentes nestes curtos textos que não podem ser lidos a eito, mas têm necessariamente de ser delibados (que palavra mais bonita!) – como licor que são.

A Veneza a que me venho referindo é apenas a algarvia, mas o livro de PJ contempla mais duas – a italiana, obviamente, e a californiana Venice, que referi atrás. Se na primeira abundam as referências a artistas, as duas outras recidivam: Albinoni, Byron, Ezra Pound, Stravinsky, Bellini, Max Ernst, e tantos outros e outras, na Veneza primacial – chamemos-lhe assim, que, de facto, é Venezia; Jim Morrison, Bukowski, Lana Del Rey, Ferlinghetti e muitos outros e outras na Venice, LA, Califórnia. Sempre na estreita cumplicidade da paisagem com as gentes que as habitaram ou que nelas se inspiraram ou que por lá passaram, isto porque

no ensejo de percorrer paisagens, ficamos enlevados, perdidos na comoção que é estarmos apaixonados, nesta atmosfera de plantas halófitas, que entre labirínticos esteiros espalham um aroma agridoce

sabemos, quem sabe, mas não queremos ver, aos locais a que estamos ligados emocionalmente não vemos defeitos, como nas pessoas que queremos ter para amar, apenas vemos nelas toda a perfeição que vai para além da beleza (Isola di Sant’Erasmo / Laguna Veneta, p. 51)

Não. Definitivamente. Neste livro, nem as Venezas, nem as ruas, nem os canais, nem o autor dão sinais de tédio. Os leitores, esses, devem, como já se disse, ler estes “postais” ou “telegramas” – como noutras ocasiões Pedro Jubilot intitulou outros dos seus livros – aos tragos, degustando cada um deles, isoladamente, espaçadamente, como um escanção faria com os melhores vinhos. E, no intervalo de cada degustação, perguntar-se-ão:

para que servem os poetas nesta era? qual é o uso da poesia? Quando a resposta imperecível se adivinha: porque o estado do mundo clama que ela o salve (Lincoln Blvd., Venice, p. 74).

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[1] Carta a Adolfo Casais Monteiro, de 13 de Janeiro de 1935

[2] Devo dizer que o meu amigo no Facebook e camarada noutra rede social (não pertencente à Meta) chamado Domingos Lobo me escreveu, em resposta a pedido meu de 14/11/2022, que “Pessoa foi o mais lúcido dos seus companheiros da Orpheu, daí ter percebido a tempo que o salazarismo era um retrocesso civilizacional e um embuste. Ao contrário de Almada, que esteve sempre encostado ao poder fascista, e o serviu, Pessoa teve a coragem de saltar da carruagem e denunciar, até com algum sentido de humor, que o Salazar e apaniguados estavam a construir uma sociedade retrógrada e sinistra.” Aproveito, aliás, a oportunidade para republicar, já a seguir, o excelente texto de Domingos Lobo a propósito dos cem anos da revista Orpheu, publicado no jornal Avante! de 26/03/2015.

[3] Esta minha apreciação, tão radical, não invalida o reconhecimento da genialidade do poeta. Subscrevo as palavras de Domingos Lobo, no artigo que refiro na nota anterior: «Não duvidamos da necessidade de um movimento literário que espelhasse os novos tempos, criador de rupturas com uma literatura vinda da tradição realista do século XIX, ou espelhando ainda restos do romantismo, pouco concernente com os primórdios da revolução industrial – consubstanciada nos escritos de Júlio Dantas, tendo este servido de bombo de feira para as arruaças polémico-revisteiras de Almada Negreiros no seu célebre Manifesto Anti-Dantas. Uma poesia que reflectisse a civilização industrial que se começava a esboçar, da nova era da máquina que na Europa e nos Estados Unidos ia criando estruturas de movimento criador autónomo, a par com o dadaísmo. Álvaro de Campos, um dos heterónimos pessoanos, exprimiria, com a genialidade conhecida, essa nova vertente poética.»

[4] p. 158 da edição da Ática, 1969: “(…) cada rua é um canal de uma Veneza de tédios (…)”

[5] https://tambemdeesquerda.blogs.sapo.pt/telegramas-do-mediterraneo-de-pedro-67982

[6] Ode Triunfal

[7] Nietzsche, O Anticristo, cap. 57