VAI FICAR TUDO BEM? NEM POR ISSO.
Quando a pandemia suscita graves questões sobre modelos de desenvolvimento, sobre relações de produção, sobre a organização político-social, são numerosas as almas bondosas que multiplicam com denodado ímpeto acções benfazejas tendentes a tranquilizar almas congéneres de seus semelhantes: DJs em varandas intentam recriar ao ar livre o ambiente festivo das discotecas de outros tempos, suscitando a participação generalizada da vizinhança; grupos de cidadãos bem-intencionados aclamam profissionais de saúde conscienciosamente votados ao desempenho das suas tarefas profissionais; cantores e profissionais da comunicação repetem-nos, dia após dia, que tudo, mas mesmo tudo, vai ficar bem, umas vezes porque somos os maiores, outras vezes porque Deus está connosco. A culminar tão ruidosa pletora de generosidade e reconhecimento, a frasezinha epidural do “Vai ficar tudo bem!” induz invariavelmente a recordação dos tempos de infância de qualquer um, quando, perante pequeno arranhão sangrento no joelho e inconsolável pranto, os progenitores do sinistrado lhe sussurravam o balsâmico “Vai ficar tudo bem!”. Descontada a crueza, exagero e impropriedade da comparação, o que isto lembra também é o suicida do arranha-céus: até agora, tudo bem, que a queda ainda vai a meio. Num registo mais sério, se bem que não mais tranquilizador, todas estas manifestações parecem relevar de uma mentalidade mítica. E se é verdade que uma ideologia que se apodera das massas se transforma em força material (Marx, claro), não é menos claro que, no caso vertente, a ideologia em causa é uma força de bloqueio. Enquanto estivermos maioritariamente infectados pelo Covid das ficções religiosas e buscarmos consolo em fetiches linguísticos, nenhum cordão sanitário nos salvará. Para cúmulo, esta infecção generalizada, longe de garantir a imunidade de grupo, o que garante é a maior alienação de qualquer grupo.
Já agora, se imagens como a da Praça de São Pedro sem vivalma se mantiverem na Páscoa do próximo ano, das duas, uma: ou o vírus nos levou a todos, ou a humanidade saiu finalmente da sua multimilenária infância. Esperemos que a primeira hipótese se não concretize, já que é de todo improvável confirmar-se a segunda.