VELHOS LOBOS, de Carlos Campaniço, precedido de nota prévia (*) sobre a apresentação do Professor António Branco
NOTA PRÉVIA
Comecei a redigir o texto que se segue a esta NOTA PRÉVIA antes da última apresentação do livro de Carlos Campaniço, na Biblioteca Municipal de Faro, a 22 do corrente mês. O Professor António Branco, ex-Reitor da Universidade do Algarve, fez, na oportunidade, uma brilhante exposição, que tentarei resumir, de memória, assumindo todos os lapsos, imprecisões e omissões que provavelmente cometerei e pelos quais peço antecipadamente desculpa.
Antes, porém, pretendo afirmar que, tendo os diálogos entabulados, na altura, entre a mesa e a assistência (numerosa), esclarecido uma ou outra dúvida ou diferente interpretação, ou contrariado um ou outro apontamento crítico da minha parte, decidi não alterar o texto já redigido nem deixar de o completar da forma inicialmente alinhavada, limitando-me a acrescentar-lhe este ponto prévio.
Começando por qualificar de fabuloso e empolgante o universo romanesco deste livro, o Professor António Branco filiou o género na tradição milenar das histórias que eram, outrora, transmitidas de geração em geração, por via oral, completou o conspecto histórico com a posterior evolução até à consagração dos subgéneros do conto, da novela e do romance, e filiou a obra de Carlos Campaniço na tradição “clássica”, assente na consistência e coesão das categorias acção, personagem, tempo e espaço. De caminho, denunciou o embuste de algumas publicações nossas contemporâneas que se apresentam como “romances”, publicadas a expensas dos respectivos autores e não sujeitas a qualquer crivo crítico editorial, que não passam de subprodutos de uma indústria livreira sem sustentação deontológica.
Pormenorizou as qualidades de Velhos Lobos, enfatizando o facto de Carlos Campaniço nunca ceder ao registo panfletário, nem à tipificação das suas personagens, que estão longe de ser planas, antes são imprevisíveis e avessas a uma lógica determinista, porque estão “vivas”. Sem embargo, e nisso consistirá uma das qualidades do autor, ressalta da narrativa a evidência “telúrica” de que, se os Lobo são os terratenentes, são os míseros Velho quem vive em harmonia com a terra. Este facto constitui, por outro lado, como que uma âncora da narrativa na realidade histórico-social.
Elogiou o uso magistral da língua que Carlos Campaniço faz, o seu recurso frequente aos regionalismos e o registo eminentemente poético da sua escrita. Exemplificando, leu pequenos excertos da obra e, para concluir, dirigiu ainda algumas perguntas ao ex-aluno e autor Carlos Campaniço, que passou com distinção.
***
VELHOS LOBOS
Não sei se terá passado pela cabeça de Carlos Campaniço a ideia do homem lobo do homem, quando ao seu último romance deu por título Velhos Lobos. As duas “famílias desavindas” que contracenam na sua narrativa têm por sobrenome “Velho” – a família pobre – e “Lobo” – a outra, a família abastada –, o que não será razão suficiente para daí se inferir que o autor quis fazer uma versão romanceada da história da sociedade portuguesa no segundo quartel do século XX, numa região onde a propriedade da terra determinou[1] um profundo e doloroso antagonismo entre latifundiários e trabalhadores rurais – desde sempre, lobos uns dos outros. A dúvida é, aliás, irrelevante: a obra publicada goza, a partir da sua difusão, de autonomia e capacidade para empatizar com muita gente. Assim é que, para o leitor-comentador que agora se entrega à ingrata tarefa de redigir esta modesta nota sobre um romance que tem merecido a atenção de gente bem mais qualificada, dos três romances de Carlos Campaniço que teve a oportunidade de ler (As Viúvas de Dom Rufia, Mal Nascer e, agora, Velhos Lobos), este é talvez aquele em que, de forma mais excruciante, se sente como que convocado pela autoridade autoral a dar testemunho de relações sociais caracterizadas por uma violência que pede meças à dos que são lobos de nome, que não de sobrenome.
Irrelevante dúvida que, mesmo assim, não deixa de suscitar, por ínvios caminhos, uma questão de algum relevo: é que a referência inevitável ao latifúndio alentejano, no segundo quartel do século passado, o aqui e agora da narrativa campaniciana (se me é permitido sugerir uma derivação para o patrónimo), suscita a questão da clivagem sempre tão discutida entre o universal e o local, como critério definidor da qualidade de uma obra literária. Um estudioso da literatura inglês, Terry Eagleton, refere-se à coisa nestes termos: «Na verdade, um dos problemas da ideia de que todas as grandes obras literárias tratam do universal e não do particular é que muito poucas emoções humanas estão confinadas a culturas específicas. […] maioritariamente, as paixões e os sentimentos atravessam fronteiras culturais. Uma razão para isso é o facto de se encontrarem ligados ao corpo humano e de o corpo ser a coisa mais fundamental que os seres humanos têm em comum.»[2] De forma mais sucinta e lapidar, Miguel Torga, sentenciou: “universal é o local sem muros”. E o certo é que, transpostas as fronteiras mais cercanas, Jacinto Velho poderia muito bem ser natural de Castilla – La Mancha ou da francesa Provença, e o Francisco d’Almeida Lobo daria um perfeito Francis Wolf na verdejante Cotswolds – onde este leitor nunca foi, se é que a precisão tem algum interesse para o caso e para alguém. Velhos Lobos é, de facto, uma obra literária a que o leitor prefere não pespegar adjectivos que o uso deslustrou, mas à qual vaticina um futuro de leitura, de estudo e de compendiação. Não é menos notável (pese embora o deslustre do adjectivo) o Cavaleiro da Triste Figura, de Cervantes, pelo facto de as suas heróicas aventuras se desenrolarem no planalto manchego, nem a determinada Maria Barnabé, no seu enclave do Montinho: de maneiras decerto diferentes, ambos se nos adentram e por cá ficam, um com as suas loucas fantasias instiladas pelos romances de cavalaria, outra com o seu ensimesmamento, a sua sabedoria bebida na dor do dia-a-dia, a sua pertinaz vontade de se afirmar livre e senhora de si, mal-grado o assédio e as insídias dos irmãos Lobo.
A capacidade efabuladora e o inegável domínio da técnica narrativa, com os seus encadeamentos e pontuais alterações da ordem cronológica da acção evidenciam uma mestria que não constitui surpresa para quem leu os anteriores romances de Carlos Campaniço. A literariedade vai, contudo, para lá dessas destrezas, e compreende, nomeadamente, tudo o que se prende com o manejo da linguagem. Neste particular, um curto parágrafo das páginas iniciais do romance (p. 14) servir-nos-á de exemplo do que é uma sintaxe equilibrada, harmoniosa, ritmada, sem excessos, sem sobressaltos:
Criados os filhos, logo partiram para os povoados das redondezas e mais além, cada qual buscando melhor vida do que aquela, de isolamento e pobreza persistente. A excepção foi Jacinto, que ficou por ali até ser o último dos irmãos em casa, esquecido como um utensílio em desuso, encarado como pertença daquele sítio mais do que qualquer outra raiz que ali tivesse vingado.
Cumulativamente à escorreiteza sintáctica, há o tropo, a figura, a conotação, a musicalidade, a sugestão. Dir-se-ia que Carlos Campaniço, no caso deste seu último romance, não quis investir tão generosamente nestes aspectos quanto o tinha feito nos anteriores. Arriscaria mesmo dizer que a verdade crua do drama humano vivido pelas suas personagens em Velhos Lobos o levou a recusar esta espécie de embuste que é o estilo. Como se dissesse: aquilo que aqui pranto perante os vossos olhos é de tal seriedade que me não vou dar ao desfrute de o alindar com metáforas, hipálages e coisas que tais.
Sartre desencadeou certo dia uma polémica, ao dizer que perante uma criança moribunda A Náusea deixava a desejar[3]. Não sendo este o lugar indicado para debater tudo o que esta frase encerra, é aparentemente certo que ela aponta para uma literatura comprometida e que toma partido pelas causas sociais consideradas justas. O autor de Velhos Lobos não enjeita o seu comprometimento com causas justas e poderá, bem dentro do seu foro literário mais íntimo, ter feito uma opção cuja legitimidade não se contesta, o que, de qualquer maneira, não significa, de nenhum modo, ter abdicado da sua capacidade inventiva no domínio da linguagem, a favor duma escrita a aproximar-se do grau zero. Não. O seu talento literário ter-lhe-á – quem sabe? – inspirado subversão semelhante à que Saramago produziu, ao escrever: "sobre o diáfano mundo da fantasia a nua realidade". Porque é, de facto, uma verdade nua e forte (para retomar os termos de Eça), ademais sumamente comovente, a que ressalta das páginas de Velhos Lobos.
Não se pense, contudo, que a economia de meios foi tal que o leitor-comentador se vê impossibilitado de esquadrinhar uns quantos exemplos daquilo a que poderia chamar a filigrana estilística própria do autor. Não. Vejamos algumas ocorrências e a tentativa de explicação da sua originalidade, que é o mesmo que dizer da sua literariedade:
Logo a abrir, há uma “orquestra de pardais-dos-telhados [a] bailar de ramo em ramo, num novelo de júbilo”. Se a “orquestra de pardais a bailar” está ao alcance de muitos, já a expressão “novelo de júbilo” representa uma óbvia subversão da normatividade. Com efeito, ela configura um procedimento a que o autor nos tem habituado e que consiste em promover, através da aproximação sintagmática, a relação osmótica de signos pertencentes a campos lexicais incompatíveis: “novelo” é algo de muito concreto, material, palpável e corrente, ao passo que “júbilo” pertence ao domínio dos sentimentos e emoções. Não há, entre “novelo” e “júbilo”, qualquer possibilidade de conjugação, na perspectiva de um discurso linear, normativo. E é por isso mesmo que, ao meter a foice muito concreta do “novelo” na seara alheia dos sentimentos, o autor produz literariedade, o que já não estará ao alcance de todos.
Na página seguinte, há, pelo menos, duas ocorrências de adjectivação que, não participando exactamente do procedimento anteriormente descrito, representam também uma forma de desvio – essa característica mais óbvia da linguagem literária. A primeira dessas ocorrências é a “pobreza imperturbável” da casa dos Velho; a segunda, é a dos olhos de Sebastião, que “se tornavam mais óbvios com o apetite”. Sempre que um signo linguístico é deslocado da sua contiguidade semântica mais familiar, ele introduz no discurso uma espécie de “ruído”, de perturbação susceptível de fazer o leitor parar, para pensar ou para sonhar. Regra geral (discurso denotativo), os qualificativos usados para o nome “pobreza” apontam para o observador (ela é “confrangedora” ou “lastimável”) ou, se têm sentido reflexo, exprimem o grau em que se situa o substantivo assim qualificado (“pobreza extrema”, “pobreza absoluta”), ou ainda os sentimento ou emoções vivenciados pela vítima (“pobreza envergonhada”). Em “pobreza imperturbável”, ficamos na dúvida, porque as pessoas, sim, podem mostrar-se imperturbáveis – mas a pobreza? E, então, absorto, disposto a melhorar o seu grau de conhecimento da língua, do mundo, da vida e do que é a literatura, o leitor congemina se a pobreza não será a personificação de qualquer entidade relativamente abstracta, uma revisitação da personagem mitológica, ou se, pelo contrário, ela é “imperturbável” porque as condições materiais da existência dos Velho são aquelas e não estão criadas condições para as “perturbar”, o que só virá a acontecer uns decénios mais tarde. Com a “obviedade” dos olhos de Sebastião, mesma estranheza do leitor, porque há olhos castanhos, azuis, brilhantes, bonitos, tristes, talvez até inteligentes, cativantes, sedutores e por aí fora, mas… óbvios?! Pois é. Para esses, há que chamar Carlos Campaniço à colação.
Poderia multiplicar exemplos e fastidiosos desenvolvimentos explicativos[4]. Não vou prosseguir nessa senda. Ninguém teria paciência para me acompanhar. Nem sequer eu. Mas se enveredei por estas explicações de carácter algo técnico não foi sem propósito. O conceito que, como aspirante a crítico literário nas horas vagas, tenho da crítica é que ela deve ter uma dimensão pedagógica, esclarecedora, promotora da abertura de horizontes, escalpelizadora. Dizer três gentilezas sobre um livro em galanteio de salão é certamente acto louvável e cai sempre bem, mas não qualifica significativamente o autor das gentilezas, enquanto crítico, nem transmitirá ao autor do livro a sensação seguramente mais gratificante para quem escreve que é a de sentir que os seus leitores se não limitaram a passar os olhos”, mas que “falaram” com ele, ainda que ele os não ouvisse, e, para cúmulo, não se limitaram a “falar”: quiseram tirar todos os nabos da púcara.
Há alguns anos, e a propósito do também grande romance A Desumanização de Valter Hugo Mãe, citei o escritor espanhol Carlos Castán que, em entrevista ao Público, afirmava: «Dizem que há escritores do como e outros do quê. Eu serei mais um escritor do como.»[5] Creio que posso retomar esta citação para dizer que Carlos Campaniço é escritor do «quê» e do «como»: de um «quê» que arrebata, e de um «como» que enfeitiça.
----------------------------------------------------------------------------------------
(*) Só uns dias mais tarde, relendo-me, me apercebi da desastrosa redundância...
[1] Pretérito de discutível pertinência.
[2] Terry Eagleton, Como Ler Literatura, Edições 70, Junho de 2021, pp. 246-247
[3] «En face d’un enfant qui meurt, La Nausée ne fait pas le poids.»
[4] Abdicando dos desenvolvimentos, eis mais meia dúzia de exemplos: “… em redor da primeira campa, gizou um rectângulo de saudade”, pp. 31-32; “não tinham espaço nos olhos para tantas novidades”, p. 40; «… limpou a despreocupação ao lenço« (p. 57), «Vinha vestida de serenidade» (p. 84), «uniformes de oficiais, pejados de condecorações, fixadas ao peito com alfinetes de orgulho», p. 84; «com os cotovelos sobre a madeira cansada», p. 91
[5] Ípsilon, 3 de Julho de 2015