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Também de esquerda

Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

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Espaço destinado a reflexões (geralmente) inspiradas na actualidade e na Literatura.

Vila de Frades, capital do vinho de talha, de Desidério Lucas do Ó, e O País das Uvas, de Fialho de Almeida

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O País das Uvas - capa (1).jpg

Ofereceu-me o meu colega e amigo Desidério Lucas do Ó o seu livro Vila de Frades, Capital do Vinho de Talha, que li de um trago. Classificado pelo autor como “trabalho de pesquisa e levantamento da memória colectiva, numa tentativa de dar voz aos que no silêncio do trabalho preservaram o património de Vila de Frades”, este livro constitui um manancial de informação sobre esta comunidade alentejana. De carácter etnográfico, pois, e redigido num estilo despojado, sem floreados, mas com muito humor, o livro transporta-nos para outros tempos, aqueles em que os velhinhos de hoje e aqueles que já nos deixaram moirejavam naquelas terras – que não eram de pão, contrariamente à ideia generalizada de que o Alentejo é apenas isso, mas sim “terra de vinho e azeite”. Moirejavam os que moirejavam, porque, nesses tempos como hoje, a condição de cada um regia-se pela hierarquia do dinheiro ou dos haveres móveis e imóveis.

Passo ao largo das descrições relacionadas com o trabalho das vinhas, das vindimas e do demorado processo de fabricação do vinho de talha (ou “pitrol”), para referir a atenção que o autor dedica aos vila-fradenses – os mais ou menos ilustres, mas também “os filhos anónimos”, alguns dos quais “conselheiros e amigos” identificados com as respectivas fotografias. É, no entanto, num dos primeiros que me quero deter, porque, sendo ilustre, traz até nós a imagem impressiva do que foi a vida dos tais “filhos anónimos” na segunda metade do século XIX e inícios do século passado.

Tive, durante dezenas de anos, bem aconchegado entre Isabel Allende e Germano Almeida, O País das Uvas, de Fialho de Almeida, olhando para mim, à espera de uma atenção que lhe foi usurpada por outros. Felizmente, o Desidério lembrou-mo e pôs diante dos olhos a enorme vergonha de ter votado ao esquecimento este grande escritor. Apesar da vergonha, e mais uma vez, uma leitura em curso (600 páginas sobre a origem das espécies) me obrigou a deixá-lo na estante por algum tempo. Ele há livros e autores a quem o respeito não nos permite deixar a meio… Para mais, também Darwin é um amigo (de nós todos). Que também nos ofereceu um livro, entre outros menos falados.

Voltando ao País das Uvas, são vinte narrativas de temática diversa, sempre caracterizadas por um léxico riquíssimo (já ninguém, hoje, escreve assim – o que não deve ser entendido como sinal de malquerença a usos distintos da língua! Como qualquer outra arte, a literatura muda, e pode-se escrever bem com outro léxico, com outra sintaxe, com outra pontuação), de notável fôlego descritivo, umas vezes a pender para a caricatura (“O anão”), outras vezes enternecedoras (“A velha”, “O filho”), com marcas da oralidade da época, curiosamente não só no discurso directo das personagens, mas até no do próprio narrador, frequentemente graças a adições, quedas ou crases:

«Eu bem na sinto! Eu bem na sinto! […]», (“Pelos campos” logo a abrir o volume); «Em solteira ia ela, no carro de bois, pela romaria de Agosto, té ao monte que ensombra a vila, malo pai e os irmãos […]» (“A velha”), «Mas tornava desoladoramente a ter co pai […]» (“Idílio triste”), «[…] com um ar de ossos violados pedindo sepultura prós cobrir […]» (“O antiquário”), etc., que a listagem completa seria demorada.

Mas O País das Uvas é bem mais do que estilo, por muito que o modo de dizer nos encha as medidas. O País das Uvas é viagem pelas geografias de um pensamento filosófico e social que cativa o leitor pela sua vivacidade, ousadia e um certo proselitismo envolto na denúncia das desigualdades e injustiças inerentes a uma ordem político-social enferma e caduca.

No tocante ao pensamento social de Fialho de Almeida, poderia transcrever numerosas observações de carácter sociológico. Dada a sua extensão, limitar-me-ei a transcrever dois parágrafos, o primeiro dos quais é, por si só, revelador de que Fialho, como o sublinha Desidério Lucas do Ó, «ao retratar a vida dura daqueles que trabalhavam a terra, foi um precursor do neo-realismo que, meio século mais tarde, aprofundaria esta temática.» Aprofundaria e dar-lhe-ia uma perspectiva de futuro, mostrando a luz ao fundo do túnel, como em tempos escreveu Alexandre Pinheiro Torres, acrescentaria eu.

«As grandes extensões de território, no Alentejo, pertencem a dez ou doze nababos que vivem nos grandes centros, indiferentes ao cultivo, e empenhados somente em perceber num prazo fixo o dinheiro das rendas, para a sustentação das suas prodigalidades e magnificências. Subtraindo ao Alentejo aqueles grandes domínios de floresta e terra arável, o que resta são courelas magras à volta das raras aldeias e baldios improdutivos, calcinados, sem ervas nem chaparros, que os pequenos disputam e repartem entre si, ciosamente. A terra tem desta forma um fabuloso preço, em mãos de pobres, e o amor do solo é uma destas paixões desenfreadas, sublimes, absurdas, que vai do maior ao mais pequeno, com uma vivacidade perfeitamente insólita, dada a apatia da gente alentejana. Sob um tal regime, fazer fortuna é coisa difícil. Há pobres diabos a trabalhar quarenta e cinquenta anos, vestindo saragoça, comendo chicharros, privando-se enfim, por amor do lucro, do estritamente necessário à existência, e que ao fim de velhos e cansados mal puderam juntar em vinhas podres e casebres de telha vã o capital de meia dúzia de contos. Nestas terreolas mesquinhas, entre o cavador que estanca a vida à enxada, ganhando apenas com que morrer de miséria, e o homem rico que pavoneia em berlinda de correias o estadão dos seus quarenta contos de hortejos e farejais[1]; nestas terreolas pode estudar-se um tipo excêntrico, provincial, característico, posto de sentinela entre o jornaleiro e o ricaço, na escala hierárquica da fortuna. É o tipo do trabalhador remediado, do lavradoreco, troca-tintas da propriedade, ou, como ele próprio se apelida, propiatairo.» (“Ao sol”)

Num outro registo, desta vez a evocar Rousseau, um passo significativo do último conto do volume (“Três cadáveres”), que constitui um retrato impressivo de uma sociedade bem próxima da barbárie:

«Assim ele sondava as naturezas nascidas puras, e que a sociedade falha ou perverte, por miséria, desprezo ou más sugestões; explicava as vesânias, os vícios, os crimes… o roubo pela fome, os assassínios por impulsão subitânea ou por defesa e por desforço a tradições e vilipêndios. Entre os felizes, quantos miseráveis cuja fortuna lhes devera ser arrancada, em holocausto à miséria pública!, e quantos facínoras, cuja vida o carrasco extirparia, por afronta à dignidade humana, poluída! Aqui se surpreendia a fazer o cálculo rancoroso dos avos de responsabilidade que na desgraça de Maria poderia ter cada homem rico das suas relações e a pedir-lhe contas dessa miséria que nunca descera a queixar-se ao meio da rua.»

No plano filosófico, é a vertente religiosa que imediatamente chama a atenção, a lembrar o dionisíaco Nietzsche:

«[…] é necessário renovar os cultos pagãos da natureza, ressuscitar as festas rústicas e os deuses simbólicos, os evoés, as legendas, fazendo outra vez brotar anões dos rochedos, elfos das troncagens vetustas e nixes dos tranquilos pegos das ribeiras. Se eu tivesse uma filha, ensinar-lhe-ia a ouvir a missa das florestas e a pedir a bênção às árvores, como a velhos vovós.

«A nossa religião tem pouco sol. […]

«A nossa vida moderna reclama uma religião mais alegre e contemporânea dos nossos ligeiros costumes que nos divirta, como uma ópera, e faça embevecer, como um museu – deusas nuas e triunfantes, mitologias aladas, mais animalidade e mais seiva, desde a forma expansiva do efebo bêbado até aos grandes festins flamengos do Olimpo – religião paralela à literatura, como forma de arte que é, irmã da pintura e da música, em que palpite alguma coisa de nós mesmos, seio ou canção, realidade ou sonho. (“Pelos campos”)

Noutras ocasiões, o tom aproxima-se do sarcástico, porque a situação o exige, ou reveste a forma de uma ironia benévola, compassiva e até humorística. No primeiro dos excertos que seguem, do conto “O filho”, o autor profliga o absurdo de certos interditos religiosos; no segundo, é o mito natalício que é chamado à colação, em contraste com a crueldade bruta do pai de um recém-nascido; no terceiro, o sentimento de uma natureza animada, dotada de alma, transporta-nos para um universo onírico compatível com as concepções cosmológicas das idades mais remotas, ao mesmo tempo que nos recorda os retratos cáusticos desenhados por Junqueiro, n’ A Velhice do Padre Eterno, ou Caeiro, no poema VIII de “O guardador de rebanhos”:

«[…] ao outro dia, quando os trabalhadores foram levar o corpo ao cemitério, o cura da Pampilhosa recusou-se a enterrá-lo em sagrado, sob pretexto de a velha ter morrido sem confissão.» (“O filho”)

«O homem ainda esteve curvado um pouco de tempo sobre os atasqueiros glácidos do rio – uma solenidade pairava ao fundo do espaço –, té que afinal saiu das trevas, com o cadáver suspenso pelos pés, todo sangrento, um cadaverzinho de infante recém-nado, roliço e roxo, cuja boquinha ria de inocência e cuja alma devera estar-se incorporando àquela hora no cortejo de eleitos que todos os anos vem, com o Menino Deus, refazer na crença dos simples a suavíssima lenda do Natal.» (“Conto do Natal”)

«Lá nos confins do mundo, onde se acaba o pavimento dos mares e começam as arcarias do céu, ouvi dizer que está caído há muitos anos um pedaço da abóbada celeste, e por ali entram as almas das criancinhas mortas, ao colo dos seus anjos-da-guarda. Nosso Senhor, fatigado de conversar em latim com os profetas, vem ver por essa fenda da abóbada as alegrias do mundo; e quando nos sente felizes, se os trigos são fartos e as redes vêm cheias de peixe, fica tão contente, o bom velho! Duma vez, um delfim de França, que morreu pequenino, vendo à entrada dos céus aquele velhote curvado, a rir para ele, de manso, pôs-lhe a mãozinha na boca, para que o velhote a beijasse, chalreando com a sua vozita de querubim: “Hei-de fazer-te duque!”» (“A princesinha das rosas”).

Enfim, para que não se pense que tudo é de uma extrema seriedade e, no fundo, cansativo, secante, há que dizer que alguns dos contos são leves e deliciosos. É o caso, entre outros, de “Divorciada”: a bela Berta, “cuja beleza resiste ao banho” e por isso é mulher “de lei”, divorcia-se porque o seu belo e inteligente Jorge, “secretário do ministro”, “não se lavava”. O que não obsta a que Fialho de Almeida, certamente amante das boas práticas relacionadas com o corpo, deixe escapar um desabafo compungido, porque trai uma incómoda (talvez só irónica) misoginia: «Por que razão me acomete este sinistro propósito de que uma mulher bela é sempre invólucro dalgum pecado mortal? Se me dizem “É formosa”, eu acrescento logo: “Culpada!”

Obrigado, Desidério, pelo teu Vila de Frades e por me lembrares o Fialho.

 

 

[1] Possível gralha.