Visuais, invisuais e outros que tais
Visuais, invisuais e outros que tais
Uma conversa de circunstância sobre a “ressonância” pejorativa de “perneta” e “maneta” (incómoda rima com “cheta”, “peta”, “ranheta”, “treta”,…), e o meu desconhecimento de alternativas de “sonoridade” mais científica trouxe-me à memória um “Contraditório” (programa da Antena 1) de há uns anos, em que Ana Sá Lopes, contrita, se penitenciava por ter, em programa anterior, usado a conhecida expressão “não dava para mandar cantar um cego”, a propósito de certo valor monetário. Creio que a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal protestara, com alguma razão, por se recorrer a uma expressão que veicula um velho preconceito em relação aos seus associados – o de que cego é sinónimo de mendigo que canta para sobreviver.
Não é aí que reside a razão deste post, mas sim no aparente desconforto que hoje parece vigorar, quando se faz referência às pessoas privadas do sentido da visão, chamando-lhes “cegos”. Para ultrapassar o incómodo, usa-se o termo “invisual”. Para além de me parecer um neologismo canhestro, “invisual” tem o defeito suplementar de nem semanticamente corresponder ao que se pretende nomear.
“Invisual”, como “visual” são, para começar, adjectivos. Uma sensação é visual ou auditiva, ou qualquer outra coisa, e quem é privado de sensações visuais pode dizer (vamos lá!...) que só tem sensações invisuais (olfactivas, tácteis, gustativas, etc.), qualificativo algo abstruso e absconso, mas aceitável, num registo irónico, caso o sujeito em questão encontrasse no sentido de humor redenção fugaz para a sua infelicidade. O problema surge, porém, quando nominalizamos o adjectivo, dizendo do cego que é um “invisual”, pois a “visualidade” do cego tem a sua sede em quem o vê e não nele mesmo. Por outras palavras: para quem tem a capacidade de o ver, o cego é perfeitamente visual e não invisual. A “invisualidade” do cego existiria, de facto, se ele fosse invisível para os demais. Porém, é para o cego que aqueles que vêem são invisuais, invisíveis ou insusceptíveis de ser vistos, sendo certo que essa invisibilidade não é característica dos que vêem, mas se deve à incapacidade de quem não vê, e a única excepção conhecida é a do cinematográfico Homem Invisível.
Admito que tudo isto possa parecer uma charada de mau gosto, mas não é assim que o entendo, e, se o meu raciocínio vos parece incoerente, revelador de deficiente conhecimento da língua ou até indiciador de desrespeito por quem padece de cegueira, quero garantir que a minha intenção é séria e respeitosa.
Os Franceses, tanto quanto julgo saber (mas posso estar desactualizado) continuam a chamar “aveugle” a quem não vê e não me consta que tenham optado pelo termo “invisuel”. O que têm é dois substantivos diferentes para designar duas formas de cegueira – “cécité” e “aveuglement”. A primeira é a cegueira propriamente dita, isto é, a que priva de sensações visuais; a segunda é a cegueira do espírito: não ser capaz de ver, compreender ou aceitar aquilo que, na perspectiva de quem acusa, é óbvio. Quanto aos Ingleses, creio que também se contentam com a “blind person”, sem problemas de maior.
Muito provavelmente, esta aversão pelo termo “cego”, assim como pelo termo “deficiente”, agora substituído pela perífrase “pessoa com deficiência” ou “pessoa portadora de deficiência” (definição dicionarística com recurso vicioso à flexão do termo a definir) radica no politicamente correcto, moda que institui uma novilíngua pretensamente despojada de conotações negativas herdadas do passado. Na verdade, os “invisuais”, as “pessoas com deficiência”, os “colaboradores” das modernas empresas, os “auxiliares de acção médica, educativa, etc.” são tão cegos, deficientes e operários como os de outrora, porque o mundo mudou, sim, mas não tanto quanto os “novilinguistas” querem fazer crer.
Voltando, para concluir, ao “invisual”, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Sociedade de Língua Portuguesa, coordenação de José Pedro Machado (1981), e o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, do mesmo J. P. Machado (3.ª edição, 1977) não contemplam a entrada “invisual”. Já o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora, pelo menos desde a 6.ª edição, de 1984, define “invisual” como «adj. e s. 2 gén. que não vê; s. 2 gén pessoa cega (de in+visual)», ao mesmo tempo que define “visual” como «adj. 2 gén. referente à vista ou à visão […]». Em princípio, a derivação por prefixação negativa deveria ter conferido a “invisual” o significado contrário a “visual”, isto é, «não referente à vista ou à visão». Mas não. Em algum momento da história da língua, aparentemente nos anos 80, um qualquer abalo sismicolinguístico derrubou o poder instalado da lógica gramatical e instaurou uma nova ordem semântica: o cego, cuja definição tem tudo a ver com a vista e a visão, passou a ser “invisual”, ou seja, «não referente à vista ou à visão».
Diz o Professor Fernando Venâncio que «não são as línguas que evoluem, são os seus falantes que as modificam». Tem razão. As línguas faladas sofrem a evolução que os seus falantes lhes conferem. Às vezes também sofrem tratos de polé. Esperemos não deparar, um dia destes, com uma nova mutação genética que faça dos surdos “inauditivos” e, de quem está privado de sensações gustativas, tácteis e olfactivas, respectivamente, ingustativos, intácteis e inolfactivos.